O artista amador é discreto, contudo, fascina e alcança o coração das pessoas pela fé
O olhar um pouco tímido escondido embaixo do boné carrega marcas não apenas físicas, mas sentimentais. Despido de se importar com a opinião alheia e longe de querer ser o dono de toda a razão, mas mergulhado em humildade, José Ubirajara da Silva, o Bira, como é carinhosamente chamado pelos amigos, simplesmente “juntou os limões, descascou e fez a tal da limonada”, tornando o pouco que tinha um utensílio de tratamento, distração, entretenimento, superação e autoestima. Instrumento de inspiração.
E para se descobrir em uma nova fase de vida, Bira contou com o total apoio da rede pública de saúde, fundamental neste processo por disponibilizar métodos eficazes de valorização da vida e dos talentos. O Sistema Único de Saúde (SUS), o principal viés do Ministério da Saúde (MS), presta suporte à população com os Centros de Atenção Psicossocial (Caps’s), administrados pela Prefeitura de Lages, por meio da Secretaria Municipal da Saúde.
Aos 46 anos, o lageano escreve uma nova página no capítulo da sua vida. Ele mora com a irmã Bernadete Feliciano do Amarante no loteamento Bates e aprendeu no CapsAD - Álcool e Drogas uma terapia que renovou suas energias e o rejuvenesceu para se dar uma nova chance, o meio de artesanato denominado relaxamento, consistindo em uma arte que utiliza um disco de vinil como tela decorativa, revestido em pintura, obra constituída por casca de ovo, palito de churrasco, peças de strass coloridas, tinta guache e cola branca, técnica ensinada pela artesã Andressa Pilar Rosa, profissional do CapsAD há quatro anos. Um de seus traços mais marcantes nos quadros está concebido no poder de atribuir formatos, feições e cores a imagens de fé e crença positiva, na esperança das figuras sacras de Jesus Cristo, Nossa Senhora Aparecida e São Jorge, e mandalas. “Pois hoje em dia sou um homem de fé”, esclarece Bira, distante das bebidas há três anos, enfrentando recaídas anteriores.
Artesanato aliado ao reiki e à auriculoterapia contribuiu para a sua melhora, com atendimentos às segundas-feiras à tarde por uma hora. “Quando eu apanho os objetos para começar a minha arte, eu simplesmente entro dentro do desenho, já imagino o desenho pronto. A gente viaja e não pensa em coisa ruim. É um trabalho que exige paciência por ser minucioso, e paciência é uma coisa que eu não tinha.” Sua irmã Bernadete o acompanhava neste processo, incentivando-o e participando do reiki como ajuda para si mesma.
Pai de três filhas, de 21, 23 e 25 anos, e avô de um casal de netos, com dois anos, Bira passou décadas amargurando-se das perdas que o vício em bebida alcoólica provocou, a exemplo de um casamento de 11 anos. “Várias coisas foram embora, um pouco do meu caráter, a minha família. Eu me afastei dos meus irmãos, minhas filhas e netos”, lamenta o homem que chegou a experimentar drogas ilícitas e desperdiçou o acerto trabalhista de 1,5 ano como pedreiro em apenas um mês em outra cidade.
Assim como contou com a turma de colaboradores do CapsAD, Bira nunca deixou de ter o respaldo da irmã Bernadete, um de seus nove irmãos, com quem ele divide a moradia, a sua assistente na confecção das obras artísticas. Auxílio material e afetivo. Aposentada, ela é a responsável pela maior parte da renda da família, pois os recursos financeiros originados com a venda das telas estão direcionados à compra de materiais e, o restante, para complementar o sustento.
Bira leva de dois a três dias para concluir uma obra, cobrada a R$ 50 fixos, independentemente da complexidade na produção. “Eu sinto orgulho do meu irmão, de como ele transpôs os obstáculos. E o mais importante: Ele quem quis e lutou por isto. Não foi fácil, às vezes dá vontade de desistir. A gente acaba ficando doente emocionalmente, mas eu não abandonei meu irmão e hoje somos vencedores. Tem de ter fé. Ele está bem por causa de Deus na Terra e os anjos do Caps na Terra”, pontua Bernadete.
O álcool como inimigo
De alta do CapsAD há cerca de três meses, Bira relembra os motivos de procurar o serviço de saúde depois de conhecer o fundo do poço do vício em bebida alcoólica. “Tive meu primeiro contato com o álcool aos nove anos de idade. Um gole de vez em quando. Acabei indo morar no sítio no interior de Painel um tempo. Fui crescendo. Eu tinha o cabelo comprido, minha mãe fazia muitas promessas. Tinha um pouco de vergonha. Eu estudei só até a 2ª série, era tímido, falava algumas palavras com dificuldade de pronúncia. Encontrei na bebida um jeito de me soltar e fazer amizades. Eu ia a bailes e beber me ajudava a socializar. Aos 14 anos voltei para Lages e o vício aumentava. Adulto, estive em situação de rua por algumas vezes. Depressão, isolamento, não queria ver ninguém. Foram 37 anos de sofrimento.”
Frequentador do CapsAD há 11 anos, a história do atendimento sensível e humanizado a Bira iniciou em 2003 (há pelo menos 18 anos), no Caps II, situado no bairro Pisani. “O CapsAD foi o lugar que mais me acolheu, mais acreditou em mim após as mais de 20 internações em tantas cidades. Sinto prazer em estar aqui, sou eu de verdade, sou eu de novo. Venho porque gosto.” Entre as profissionais pelas quais ele sente gratidão está a técnica de enfermagem, Edna Corrêa.
O resgate aconteceu de forma estratégica e a conta-gotas, uma atuação de enobrecer os valores e princípios de José Ubirajara. “Consegui de volta meus bens preciosos. Irmãos, filhas e netos, com quem estou reaprendendo a viver, e a amizade com a ex-esposa. Hoje sou um cara feliz, consigo enxergar coisas que estavam a minha frente e não via. A embriaguez é uma venda nos olhos. Meus planos para o futuro? Eu só quero viver com meus netos e com as filhas, com as quais convivi, mas ao mesmo tempo não convivi, porque meu espírito não estava lá”, confessa.
A artesã Andressa Pilar da Rosa recorda as passagens delicadas quando conheceu Bira, um paciente e amigo. “Foi uma época crítica. O Bira era uma pessoa difícil, com humor alterado, uma mistura de rebeldia e falta de paciência, Por vezes chegava com uma garrafinha de bebida e influenciava os colegas. Em virtude do trabalho de valorização e olhar humano e profissional, hoje não reconheço mais aquele homem no Bira de agora. Está completamente diferente, um ser humano protegido, que se gosta”, resume Andressa, em lágrimas.
Bira permanece em acompanhamento apesar da liberação. Recebe atendimento psicológico, psiquiátrico e clínico geral e fornecimento de parte da medicação junto à Farmácia Básica Municipal. Tudo sem custos. “O Bira estava em condições de vida complicadas, debilitado, magro, triste. A abordagem dos profissionais ampliou seus horizontes e nada se compara, ele se sente valioso outra vez, e é”, salienta a coordenadora do CapsAD, Camila Tessari.
A gerente de Saúde Mental da Secretaria Municipal da Saúde, Janaína Schlickmann de Souza, diz ser Bira “um paciente especial, repleto de qualidades e uma prova de que o trabalho diário e consistente vale a pena. Uma das características do Caps é esta: Cuidar do ser humano em sua plenitude e tentar uni-lo aos seus familiares, pois o amor cura e o que é feito no dia a dia é com carinho e tolerância.” Para adquirir ou encomendar telas do artista amador Bira, basta entrar em contato com ao CapsAD: 3251-7972/99976-7793 (WhatsApp).
CapsAD atende 525 pacientes
Os grupos terapêuticos do CapsAD foram retomados, os quais foram interrompidos pelo período crítico da pandemia do novo coronavírus, gerador da doença Covid-19. Grupos de educação e saúde, livre expressão, atividade física, direitos e cidadania e artesanato.
São fortes aliados ao tratamento dos pacientes inseridos nos Caps’s.
Em endereço novo desde agosto de 2021, o CapsAD esteve na rua Correia Pinto por 11 anos e tem suas portas abertas atualmente na rua Lauro Müller, nº: 457, Centro, próximo à prefeitura. Atende pacientes a partir dos 18 anos de idade, com serviços multiprofissionais: Médico psiquiatra, médico clínico geral, enfermeira, técnico de enfermagem, psicóloga, assistente social, terapeuta ocupacional, educador físico, artesã, profissionais administrativos, cozinheira, auxiliar de serviços gerais, motorista e segurança.
Aos pacientes são oferecidas oficinas de artesanato - tricô; crochê; feltro; pintura em tecido, tela, madeira e vidro, e reciclagem - café da manhã e da tarde, e almoço. Lanche ao grupo noturno, entre 18h e 20h. No total, 525 pacientes recebem algum tipo de atendimento na estrutura.
Há salas de terapia em grupo, de atendimento individual, integrativa e de desintoxicação ambulatorial com quatro poltronas e uma cama hospitalar. O CapsAD presta serviço de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h.
Você sabe o que são os Caps’s?
Conforme o Ministério da Saúde (MS), nas suas diferentes modalidades, são pontos de atenção estratégicos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps): Serviços de saúde de caráter aberto e comunitário constituído por equipe multiprofissional e que atua sobre a ótica interdisciplinar e realiza prioritariamente atendimento às pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, em sua área territorial, seja em situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial, e são substitutivos ao modelo asilar. Existem os seguintes: Caps I, Caps II, Capsi, CapsAD, Caps III e CapsAD III.
Em Lages são abertos o Caps II (atendimento a todas as faixas etárias, para transtornos mentais graves e persistentes, inclusive pelo uso de substâncias psicoativas, em cidades e ou regiões com pelo menos 70 mil habitantes), Capsi (atendimento a crianças e adolescentes, para transtornos mentais graves e persistentes, inclusive pelo uso de substâncias psicoativas, em cidades e/ou regiões com pelo menos 70 mil habitantes) e CapsAD - Álcool e Drogas (atendimento a todas faixas etárias, especializado em transtornos pelo uso de álcool e outras drogas, em cidades e ou regiões com pelo menos 70 mil habitantes).
Texto: Daniele Mendes de Melo
Fotos: Toninho Vieira