Ela viveu instantes de dor, medo e incertezas. Teve a sensação de que viu a morte de perto. Flashes da vida passaram em pouquíssimos segundos em sua mente. A jovem musicista de 33 anos, professora de violino em seu próprio estúdio de música, Simone Pires Vargas Chiomento, é gaúcha de Santa Maria e escolheu Lages para escrever sua história depois de conhecer e casar com um lageano que conheceu na faculdade na cidade mais universitária do Rio Grande do Sul, Santa Maria. Ela mora em Lages há três anos, no bairro Santa Catarina, e não tem filhos.
Como a vida tem altos e baixos, ela passou por uma das maiores provações no dia 18 de novembro de 2018 em uma viagem de volta para Lages na rodovia no município de Ernestina, perto de Passo Fundo. Seu marido estava no volante do carro e acabou perdendo o controle da direção. O engate do cinto de segurança atingiu a perna esquerda dela, causando um sério ferimento no alto da coxa, além de alguns pontos na cabeça. Seu esposo, que também é músico, saiu ileso do acidente.
No começo de 2019, o membro inferior sofreu uma necrose com perda de pele, o desbridamento, passando a ser visível uma camada de gordura. Em 26 de fevereiro deste ano surgiu uma drenagem externa, como um vazamento. Dois dias depois ela passou por uma cirurgia em Lages, com retirada de tecido, no Hospital Nossa Senhora dos Prazeres, comandada pelo cirurgião vascular, Paulo Cesar da Costa Duarte, tendo alta hospitalar no dia do seu aniversário, 7 de março. Simone enfrentou, ainda, um quarto isolado e não tinha contato contínuo com outras pessoas.
Apenas um dia depois já estava na Policlínica Municipal Eneo Pacheco de Andrade para a primeira troca de curativo. O tratamento se prolongaria até agosto sob cuidados atentos.
Ao entrar pela porta de vidro do departamento de Curativos Especiais, as profissionais retiravam o curativo e a placa atuais, com higienização do local através de jato de soro fisiológico e recolocavam a placa, novas gazes, chumaços e atadura. A evolução da cura fez com que os curativos passassem a ser feitos com chumaços e micropore para aproximação de bordas.
Fotos diárias eram enviadas a sua mãe, em Santa Maria, para deixá-la tranquila em relação ao caminho árduo em busca do bem-estar. “Eu não tinha minha família comigo aqui, as gurias da Policlínica assumiram o lugar de mãe”, se emociona Simone.
A subjetividade do violino e as lágrimas de gratidão
A tarde desta quarta-feira (2 de outubro), foi recheada de gratidão de Simone para as profissionais que a receberam de braços abertos por cinco meses, com sensatez e as mãos precisas e delicadas ao mesmo tempo. Simone foi uma boa aluna e conciliava os curativos com os cuidados e repousos em casa.
E este dia de Sol de quarta-feira serviu para ela ir até a Policlínica e interpretar duas lindas canções em seu violino para elas: Aleluia (Hallelujah) e Somewhere Over the Rainbow. “É fácil só dizer que as pessoas fazem as coisas e se saem bem feitas não seria mais que sua obrigação. Elas merecem minha homenagem, sim, por me ajudar a conquistar minha vida de volta por completo”, reconhece a amante de violino desde os oito anos de idade, formada bacharel em Violino pela Universidade de Santa Maria (UFSM) e estudante de licenciatura em Música pela Uniplac.
Simone sente-se abençoada, e agora quer retribuir a oportunidade que Deus lhe ofertou após a recuperação do trauma. “Ofereci meu trabalho como voluntária para dar aulas de violino no Centro de Atenção Integral à Criança (Caic) Nossa Senhora dos Prazeres e na Escola Municipal de Educação Básica (Emeb) Mutirão. Tenho vontade de montar uma Orquestra Municipal com crianças e adolescentes”, projeta a musicista. “Daqui em diante uma nova vida, desacelerar, viver de verdade. Sentir prazer em fazer as coisas. À prefeitura de Lages eu dou meus parabéns e desejo sucesso a estes profissionais que lutam diariamente.”
Os anjos travestidos de gente
Em consulta no Hospital Regional de São José, Simone recebeu a notícia de que o risco de amputação era de 98% em decorrência da severidade. Se o tratamento fosse falho ou ineficaz, ela poderia ter sido internada para ser submetida a algo mais profundo e desgastante, como a antibioticoterapia. O Regional não possui recursos financeiros para a compra das placas que foram fundamentais para o êxito da reparação da perna, tanto que os profissionais da Grande Florianópolis ficaram admirados de Lages dispor de um produto tão essencial para o restabelecimento de vítimas.
A lesão era extensa, com o tamanho de 15 centímetros por dez e quase quatro centímetros de profundidade. A princípio não seria um caso para a Policlínica Municipal, mas sim para a Unidade Básica de Saúde (UBS) de referência, entretanto, houve o direcionamento à estrutura do Centro em razão do material demandado, a exemplo da placa de hidrofibra e carboximetilcelulose utilizada na cicatrização, e ao amplo tempo de tratamento indispensável.
O acolhimento foi feito imediatamente na Policlínica e o vínculo com as servidoras foi inevitável. Cada placa custa em torno de R$ 100 e era trocada em Simone a cada visita, portanto, duas vezes por semana ao longo de cinco meses.
Tudo sem custo nenhum, um alívio, pois Simone se afastou do trabalho e contou somente com o auxílio-doença da Previdência Social. “Graças a Deus e a estes anjos hoje o ferimento está inteiramente fechado. Embora eu tenha perdido a sensibilidade da coxa por enquanto, eu não tive mutilação. Vou ter que fazer fisioterapia e futuramente cirurgia plástica, vou tentar pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em maio tive uma consulta no Hospital São José com o cirurgião plástico e não farei enxerto por ser uma situação de risco. Então fiz acompanhamento com nutricionista obedecendo a uma dieta super proteica para o corpo reagir e o tecido ser regenerado num processo naturalmente. Agradeço a Deus por estar com o cinto na hora do acidente, se não eu teria morrido. Sou privilegiada por estar aqui viva dando meu relato”, descreve Simone.
A cura pelo amor
Servidora municipal e moradora de Lages há 23 anos, a coordenadora do Setor/Programa de Curativos Especiais da Policlínica Municipal, enfermeira com carreira há 32 anos, Silvia Beatriz Menegolla, esteve à frente do tratamento de cicatrização de Simone junto às técnicas de enfermagem Katia e Gisele, esta substituída recentemente por Alessandra.
Impactada, a equipe recebeu o desafio de tratar uma lesão grave e profunda no alto da coxa esquerda. Após procedimento cirúrgico feito pelo médico Paulo Cesar da Costa Duarte, especialista que drenou o ferimento, pois apresentava praticamente um abscesso, este encaminhou o caso à Secretaria Municipal da Saúde para os curativos com produtos especiais e devido à especialidade no tratamento de úlceras arteriais e venosas, e pés diabéticos. “Um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) é atender bem a todos, sem distinção, mas com isonomia. A Simone se tornou uma paciente especial porque ela sempre veio com alto astral e esperançosa, dando conselhos, mesmo com todo o problema dela, dando risada, dizendo que o ferimento ia fechar, sim. E nós com aquele medo de infecção bacteriana, é um risco que corríamos. Ela sempre positiva”, desabafa Silvia, que também é gaúcha, de Erechim, e é mãe de uma adolescente de 15 anos.
Mais do que técnica e conhecimentos específicos dos livros e da prática, lidar com o sofrimento físico do ser humano depende de sensibilidade, empatia, altruísmo, senso de solidariedade e respeito. Não basta apenas curar o corpo, mas as feridas emocionais. Uma mistura de ser e ter. “Primeiro de tudo é preciso ter amor à profissão para poder trabalhar com afeto ao paciente porque têm pessoas muito carentes e a gente acaba emocionalmente se envolvendo, somos pessoas com sentimentos. A Simone nos cativou, assim como todos os demais pacientes. Nós temos uma palavra, um carinho, um abraço. São todos atendidos da mesma forma, seja rico, seja pobre. É olho no olho“, revela Silvia.
Na Policlínica são prestados atendimentos aos moradores de partes do Centro descobertas pela Estratégia Saúde da Família (ESF), a partir de curativos especiais. O setor funciona de segunda a sexta-feira, das 7h40min ao meio-dia e das 13h às 17h.
São 19 pacientes atendidos pelo Programa, além da média de 50 pacientes por dia, entre curativos, retirada de pontos cirúrgicos, medicação e verificação de pressão arterial. A retiradas de pontos tradicionais podem ser feitas nas UBSs nos bairros onde os pacientes residem, ou na Policlínica quando se tratam de situações especiais, ou na Unidade de Pronto-Atendimento (P.A.) Tito Bianchini aos finais de semana.
Quando o caso é direcionado pelas UBSs para a Policlínica, o médico ou enfermeira solicita vaga no Programa e o paciente é encaixado. Veículo para transporte de busca e volta para casa é disponibilizado a pacientes de baixa renda. O contato da Policlínica é 3251-7920.
Texto: Daniele Mendes de Melo
Fotos: Marcelo Pakinha