Trabalhadores deram uma pausa em suas funções, sem a pressa do dia a dia, e levaram, para fora das paredes tensas de uma unidade hospitalar, a luz da resiliência, capacidade que cada pessoa tem de lidar com seus próprios problemas, de sobreviver e superar momentos difíceis, diante de situações adversas e não ceder à pressão.
Quando a linha oscilante dos batimentos cardíacos de repente faz um caminho retilíneo e um ruído sonoro estridente começa a tocar, é sabida a hora em que a vida chegou ao fim, de outra linha. Assim tem sido os dias tristes das famílias cujas vítimas da Covid-19, doença infecciosa causada pelo novo coronavírus, estão espalhadas por praticamente 200 países.
Atualmente são dois milhões de óbitos, 121 milhões de casos confirmados e 69 milhões pessoas recuperadas. No Brasil são 287 mil mortes, 11 milhões de confirmações e dez milhões de recuperações. Lages tem 278 óbitos registrados, e outras cidades da Serra Catarinense possuem 148, além do sabor amargo da lotação total de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e de enfermaria. São 17.535 casos confirmados, 14.814 recuperados e 2.443 casos ativos em Lages.
E são as curas e voltas por cima, de pessoas que tiveram suas chances renovadas dentro da própria casa ou nos leitos hospitalares com a ida direto para o seu lar, o combustível para a positividade não perder força, embora inúmeras vezes os pacientes se encontrem cansados, de igual forma os seus familiares e os protetores desconhecidos até então, profissionais da área da Saúde que prestaram um juramento e assim o cumprem por dias, noites e madrugadas, segurando as mãos e os projetos de vida de gente que sequer haviam visto antes.
Mas e quem está ao lado do médico, da enfermeira e do técnico de enfermagem enquanto ele sai aos corredores para secar o suor e as lágrimas? Para responder a esta pergunta, um ato de homenagem em todo o Estado de Santa Catarina lembrou a solidariedade aos familiares das vítimas da Covid-19 e o apoio aos trabalhadores da Saúde, no final da manhã desta sexta-feira (19 de março), data de um ano do início da corrida de enfrentamento à pandemia que já se alastrava em outras partes do país depois de ter invadido outras regiões do planeta. Os atos simbólicos foram organizados pelo Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Santa Catarina (Cosems/SC) e aconteceram de forma simultânea em frente a hospitais e estabelecimentos de Saúde em todos os 295 municípios catarinenses, sem prejudicar os atendimentos.
O maior município em extensão territorial de Santa Catarina e o maior em número de habitantes da Serra Catarinense, Lages, reconheceu o esforço dos pacientes pela vida, das famílias em transformar a dor do luto em saudade e a competência e resistência de seus trabalhadores em uma sexta-feira de Sol forte e céu azul entre nuvens. Concentrados no entorno do Centro de Triagem Tito Bianchini, colaboradores da Secretaria Municipal da Saúde, dos departamentos Centro de Triagem, Atenção Básica, Núcleo de Tecnologia da Informação (T.I.), higienização, compras, apoio administrativo e financeiro, transporte, segurança, manutenção e gestão de pessoas, se posicionaram lado a lado nas calçadas respeitando o distanciamento social.
No corpo, em vez das típicas roupas brancas, camisetas pretas e máscaras de proteção facial. Nas mãos, balões pretos e cartazes com frases de sensibilização, como “Deixamos nossa família para cuidar da sua”, “Estamos de luto pelas vidas perdidas” e “Vai ficar tudo bem”, para mobilizar as pessoas que passavam a pé ou de carro pelo local.
A trilha sonora da manifestação eram músicas entoadas por duas colaboradoras da Saúde - violão e voz, Emanuele Pereira, estagiária do setor de Regulação de Exames, e Mauricéia Bazi, coordenadora da Alta Complexidade, no vocal - letras mergulhadas em fé, refúgio, tranquilidade e equilíbrio. Entre as canções, “Um Refrão pra sua Alma”, “Eu Navegarei” e “Sou Casa”.
Mesmo a distância, homens e mulheres se misturavam às pessoas que aguardavam atendimento ou notícias de parentes do lado de fora do Centro de Triagem, num misto de cenários de ansiedade, apreensão, incertezas, mas também de esperança, compaixão, desprendimento e benevolência. “Bom que existem anjos no céu e que ótimo termos anjos aqui em Lages”, resume o prefeito Antonio Ceron, que acompanhou o evento de uma das sacadas da prefeitura, ponto final do ato.
Somados todos os colaboradores da Secretaria da Saúde, o cálculo é de aproximadamente 1.400 em todas as estruturas, orientados a realizarem suas homenagens nesta sexta em seus próprios locais de trabalho, como Unidades Básicas de Saúde (UBSs), Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) 24 Horas Maria Gorete dos Santos, Vigilância Sanitária e Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest). Em torno de 70% do quadro de profissionais pertencem à linha de frente de combate à Covid-19, incluindo os das UBSs, pois atendem casos de sintomas respiratórios. O secretário da Saúde de Lages, Claiton Camargo de Souza, exclama que, “esta manifestação atraiu os olhares para aquelas pessoas que não pararam de trabalhar nem um minuto desde que todo este caos iniciou. Os profissionais querem descansar, mas infelizmente não podem, pois estão cuidando das outras pessoas, não conseguem por conta da demanda, do auxílio incessante. Não vivemos tempos normais. Agradecemos aos nossos soldados da Saúde, e necessitamos recordar mais uma vez este alerta à comunidade: Cuide-se!”
Um minuto de silêncio e os sons de socorro
Após, em caminhada, com respaldo dos agentes de autoridade de trânsito (Diretran) nos desvios de rota, os trabalhadores seguiram caminhando pelas vias, passando em frente às fachadas comerciais, chamando a atenção dos empresários e atendentes, nas ruas Rui Barbosa e Lauro Müller, até alcançar a rua Hercílio Luz, endereço de um dos ambientes de mais críticos da pandemia: O Hospital Nossa Senhora dos Prazeres, onde pacientes estão submetidos ao seu tratamento contra o coronavírus. Na sequência, a caminhada seguiu pela rua Benjamin Constant, até chegar à Praça João Ribeiro e ao Largo da Catedral Diocesana, ao lado da prefeitura, onde houve um minuto de silêncio, a soltura dos balões ao vento, salvas de palmas e uma “disparada” de sons das sirenes e luzes giratórias de ambulâncias e viaturas. “Nossas condolências e admiração às famílias das pessoas que foram embora por causa desta fatalidade, e aos nossos companheiros de luta, a nossa valorização”, observa a diretora administrativa e financeira, Léia Teixeira da Silva.
Fran: Uma gladiadora da tropa de elite da Saúde
Uma das personagens deste enredo é Franciele Hoffer Costa, profissional que antes de ser técnica de enfermagem é ser humano, filha, irmã, esposa e mãe. Casada, ela é mãe de um casal de filhos, com 12 e 21 anos.
Servidora pública municipal há 20 anos, entre um processo seletivo e outro, Fran, como é afetuosamente chamada pelos colegas de Centro de Triagem, coleciona histórias emocionantes e marcantes como tatuagens em seu coração, de tão notáveis que são. As suas experiências mais dolorosas e, em contrapartida, as recompensadoras, estão enraizadas nesta pandemia, um verdadeiro baú de guardar emoções arrebatadoras.
Seu turno original de trabalho é de oito horas diárias, mas com o surgimento de um vírus tão contagioso e seu agravamento, quatro horas foram acrescidas em cada um dos dias úteis da semana, carga horária dividida entre a Diretoria de Atenção Primária pela manhã e o Centro de Triagem à tarde. E nos finais de semana é obedecida uma escala de 12 horas, previamente produzida. Antes do furacão gerado pela Covid-19, ela estava atuando na Diretoria de Atenção Primária, serviço junto à sede administrativa da Secretaria da Saúde.
Desde março de 2020 ela encara pedidos de ajuda sem que nem uma palavra seja dita, apenas pelos olhares, e, neste um ano de luta contra a doença, ela deposita dedicação aos poucos minutos que sobram do seu dia para raciocinar e tentar entender tudo isto. “Nos últimos tempos o trabalho têm sido direto e direto. No pico de jornada chegamos a fazer 15 horas totais, foi semana retrasada. Virou rotina, comum trabalhar 13, 14 horas. Estamos aqui pela vida do próximo. Os últimos dias têm sido bem difíceis, cada dia que passa as coisas ficam complicadas, Mas, por outro lado, é muito gratificante poder contribuir com as pessoas, é uma relação de confiança, de afago, como se fôssemos de sua família.” Em seu turno, Franciele presta assistência de 20 a 30 pacientes.
Mais de 400 pessoas têm passado, por dia, no Centro de Triagem. “É fundamental às pessoas respeitar o sofrimento dos profissionais e dar-lhes, sempre que possível, uma palavra de consolo, um gesto de fortalecimento emocional. Estamos todos sobrecarregados - quem está na linha de frente, quem está trabalhando no comércio e prestação de serviços e quem está em casa fechado, atendendo às regras sanitárias.”
Algo que a intriga e chateia é a falta de bom senso que ainda insiste em invadir muitas consciências por aí. “Em geral, as pessoas precisam urgentemente ter mais empatia, amor e respeito. Entre nós mesmos. Assimilar o lugar de dor do outro. Acompanhar o médico para dar uma notícia ruim a uma família é extremamente chocante, nos abala. Houve quatro situações marcantes, eram quatro óbitos que precisavam ser avisados as suas famílias, foi bem triste”, desabafa Fran, que já acompanhou a comunicação de cerca de dez óbitos.
A paciente Fran
E do lugar de provedora de atendimentos, Fran passou a paciente. Em dezembro ela sentiu os primeiros sintomas do que seria confirmado como o novo coronavírus. Então ela sentiu na pele o privilégio de ser cuidada.
Além dela, ao todo dez pessoas da sua família contraíram o vírus, entre elas, marido e filhos. “Senti dores de cabeça, garganta, no corpo, tive tosse e 40% dos pulmões afetados. Uma tia foi contaminada em junho e até agora ela está com sequelas. E senti como é essencial termos alguém por nós”, relata.
Passada esta onda de pandemia, como deseja toda a humanidade, uma nova Fran deve surgir. “Em um primeiro momento é uma Fran cansada e estressada, mas depois desta tormenta vai nascer uma Fran mais emotiva, ainda mais humana. Em todo este tempo já devo ter atendido mais de mil pessoas, dando-lhes boas notícias de melhora, cura e alta, e cada uma deixa uma lição para mim, um exemplo de superação, de que a vida é um sopro mais valioso que diamante e não pode ser desperdiçado.”
Texto: Daniele Mendes de Melo
Fotos: Ary Barbosa e Paulo Marques